CAFUNDÓ

CAFUNDÓ


ZÉ MEIRELLES: UMA HISTÓRIA DE AMOR AO CAVALO


Em 10 de Outubro de 1910, às 10:00 horas, na Fazenda Santana, em Visconde de Rio Branco (MG), nascia José, caçula de uma prole de 5 filhos do Cel. Juca Meirelles com Da. Delmira.

Como ocorrera nos partos anteriores, Da. Delmira produzia leite insuficiente, agravando o quadro com uma febre puerperal, infecção materna quase fatal naquele tempo.  Por isto, recorrendo a um hábito do Sul de Minas, de onde procediam, o Cel. Juca mandou procurar uma égua parida para acalmar a fome do caçulinha.

 José dos Reis Meirelles Filho teve, portanto, como irmã-de-leite uma mulinha ruça, devendo datar daí sua ojeriza pelos muares, só comparável à sua paixão pelos cavalos.  Quanto à ama-de-leite, foi certamente uma égua Mangalarga Marchador.

Os pais de Zé Meirelles haviam emigrado da região de Cruzília, onde morava a família de Da. Delmira, descendente de Valério Torquato Junqueira, o ‘Papai Sinhô’, neto do Barão de Alfenas. 

Sua fazenda de origem chamava-se Cafundó e ficava próxima da Serra de São Tomé das Letras, à distância de uma légua da Fazenda Bela Cruz, hoje pertencente aos primos Argentino e Ofélia Reis Junqueira. A mudança para Visconde do Rio Branco, na Zona da Mata mineira, ocorreu por volta de 1880 e foi realizada a cavalo, levando uma família com todos os seus pertences, 20 vacas, uns poucos animais de serviço e 2 casais de escravos alforriados!... 

Estabelecendo-se na Fazenda Santana, onde nasceu o menino José, prosperaram cultivando café, cana de açúcar e gado de leite, além de um roçado de subsistência.  Nesse ambiente, Zé Meirelles passou sua infância, sempre recordada com saudade por causa dos pais que muito amava e da vida animada de uma grande fazenda geral. Perfeitamente conservada e ainda bastante produtiva, a Fazenda Santana pertence hoje à Sra. Rosa Bouchardet.

 ESTUDOS EM SÃO JOÃO D´EL REY

Em 1920, seguindo o exemplo de outros parentes, o Cel. Juca se transferiu para a cidade de Juiz de Fora.  Cansado das lutas pioneiras em Visconde do Rio Branco, pretende completar a educação dos filhos na ‘Manchester Mineira’.

 O menino ‘Zezé’, então, com 10 anos, vai estudar no colégio de Da. Áurea Bicalho, famosa mestra.  Dessa ocasião ainda guarda amizades, velhas de mais de 60 anos, e recordações singelas, quando assistia à passagem dos filhos ilustres de Juiz de Fora montando belos cavalos ou em carros (troles) puxados por mulas bem aparelhadas.

Guiado pela severidade paterna, vai estudar no Colégio Santo Antônio em São João D´El Rey, onde conclui os exames preparatórios.  E guarda desse período muitas lembranças dos primos, do futebol e sobretudo, das férias!

Mudando-se para o Rio de Janeiro, cursa a Faculdade Nacional de Medicina, formando-se em 1934.  Durante seus tempos de acadêmico, continuou ligado ao campo, visitando a fazenda paterna nas férias e também as fazendas dos parentes, principalmente a de um tio que muito estimava – Severino Junqueira de Andrade[1].

O Cel. Juca Meirelles, que não gostava de criar cavalos, nunca deixou de possuir grandes marchadores, que marcaram a infância e a memória do menino José.  Nomes estranhos como Togo, Boneco, Condor e Madame, égua de propriedade de Da. Delmira e cria do ‘Chiquinho do Cafundó’.  Esses animais eram adquiridos no Sul de Minas, quase sempre na Fazenda Campo Lindo, do primo José Braúlio, no Angahy, do tio Christiano, no Engenho de Serra e noutras fazendas da região.

A MEDICINA E O APELO RURAL

 No Rio de Janeiro, primeiro estudante e depois médico, morou com o tio materno Thomé Junqueira de Andrade, por quem teve grande afeição, dedicando-lhe amizade e consideração até o fim de uma existência longeva de quase 100 anos.  Desse tio, que foi testemunha ocular das mudanças ocorridas em nosso país ao longo de um século, aprendeu grandes lições de vida, e muito sobre a origem do cavalo Mangalarga Marchador.

 [1] Nota: esta é a Fazenda Tabatinga, em Santana do Deserto (MG), pertencente a este tio, cujo apelido era ‘Vilica’. 


Sempre juntos, freqüentavam a a casa do tio Severino (Fazenda Tabatinga), por quem o jovem médico também nutria enorme afeição.  O ambiente citadino não impedia que as conversas girassem, invariavelmente, sobre as lides de campo, despertando em Zé Meirelles o desejo de regressar à vida rural, onde sempre se sentiu muito a vontade, por força de sua vocação excepcional para a criação de animais.  Já se disse que “... os Junqueira possuem atavismo pela terra”, e foi graças a esse atavismo que José dos Reis Meirelles Filho abandonou a cidade grande e uma carreira promissora de médico, para retornar à vida no campo.


SÍTIO SÃO GERALDO, EM TRÊS RIOS

 Parte por herança paterna e parte adquirida de seus cunhados, Zé Meirelles instala o Sítio São Geraldo, em Três Rios (RJ), uma gleba de 250 hectares desmembrada da Fazenda São José, que pertencia aos seu irmão Donato Junqueira Meirelles, grande agricultor e criador de bovinos da Raça Holandesa Vermelha e Branca.  Inicialmente, frequenta o sítio esporadicamente, até que rompe os vínculos com a metrópole e passa a residir definitivamente no campo, em 1943.  Uma de suas primeiras providências foi pedir ao tio Christiano, do Angahy, que lhe mandasse uma égua de sua famosa criação.  Assim, por 400 mil réis, adquiriu a potra Garbosa, filha de Mineiro em Garbosa, castanha, mediolínea, de ardência e andamento incomparáveis, recém - amansada, que foi sua condução durante os anos da II Guerra Mundial.

 Suas visitas aos vizinhos, idas a Três Rios (16 kms) e a Paraíba do Sul (25 kms) para tratar de negócios e as visitas aos parentes das fazendas Tabatinga, Santana, Santa Clara e outras, eram feitas sempre montando Garbosa.  Seu irmão Donato o acompanhava montando Clemanceau, um tordilho castrado que mesmo pelos padrões atuais deveria ser considerado um excelente animal. 


Atento aos ensinamentos de seu falecido pai, que não admitia que um homem se realizasse sem constituir família, e de há muito apaixonado por sua prima Dinah, filha do Cel. Severino Belfort de Andrade, Zé Meirelles se casa em Maio de 1945.  Seu sogro fora grande criador de bovinos da Raça Holandesa Preta e Branca.  Influenciado por Dinah, o proprietário do Sítio São Geraldo liquida um incipiente plantel de gado Indubrasil e se inicia na criação de gado leiteiro, ajudado pelo irmão Donato, pelo cunhado João Junqueira (Fazenda Dois Irmãos – Abaíba), pelo tio Severino (Fazenda Tabatinga) e por outros parentes e amigos.  Logo se transforma num respeitado criador de Holandês Preto e Branco.  Muitas de suas vacas, vendidas a criadores de diversos estados, e tratadas visando obter grandes produções, transformam-se em recordistas e campeãs de concursos leiteiros.  Mas Zé Meirelles, aliada à vocação de criador, sempre teve grande consciência classista e espírito de liderança, que o conduziram à presidência da Associação dos Criadores de Gado Holandês de Minas Gerais, além de ter sido vice-presidente por várias gestões e de permanecer colaborador até hoje.

PAIXÕES E MANGALARGA

 Suas paixões no terreno criatório não se limitaram ao gado Holandês, pois sempre foi um grande criador de cachorros Fila, muito antes de essa raça transformar-se em produto de exportação.  Como avicultor, chegou a possuir 5 mil aves poedeiras, numa época que não existiam rações balanceadas, antibióticos, vacinas, automação, nem luz elétrica, pelo menos no Sítio São Geraldo.

 As diversas crises do setor e alguns problemas de saúde levaram-no a abandonar a criação de aves e do gado puro, sem que se descuidasse da criação de cavalos, paixão da qual nunca se separou.  É certo que os laços familiares o impulsionaram para a Raça Mangalarga Marchador, mas sua opção por essa raça não foi puramente por questões de família.

 Houve tempo (1949) em que  chegou a adquirir um potro Mangalarga da criação paulista de João Francisco Diniz Junqueira, para servir de reprodutor no Sítio São Geraldo.  Mas por causa da amizade que o ligava ao tio ‘Vilica’ (Fazenda Tabatinga), tinha acesso a todos os reprodutores daquela famosa seleção, tanto assim que, ano após ano, a égua Garbosa foi coberta por Predileto, Clemanceau, Nero, Volga, Vendaval e outros garanhões da Tabatinga, além do Sargento II do tio ‘Banico’ (Urbano de Andrade Reis – Fazenda Herdade).

 Mas Cafundó Garbosa, inscrita no 1º livro de fêmeas da Associação, jamais pariu uma fêmea para continuar a criação do Sítio São Geraldo.  E foi só por volta de 1952, que Zé Meirelles adquiriu duas potras, Abaíba Rama e Abaíba Huri, além da potra Fada, do primo ‘Zezé do Porto’, com as quais começou de fato sua criação.

FILHO, CIDADE & HIPISMO

 Do casamento com Dinah nasce o menino Juca, José dos Reis Meirelles Neto, que assina estas notas sobre seu querido pai.  Juca precisava estudar, mas Zé Meirelles ainda tinha frescas na memória as lembranças do colégio interno de São João D´El Rey.  Por isso, resolve mudar-se para Juiz de Fora, cidade próxima do Sítio São Geraldo.

 Na hospitaleira cidade do Vale do Paraibuna, Zé Meirelles torna-se amigo de muitas pessoas apaixonadas por cavalos – não necessariamente os da Raça Mangalarga Marchador, que o introduzem no hipismo clássico.  Aos 42 anos começa a praticar o hipismo de competição, logo se transformando em campeão de saltos no pequeno clube local.  Tendo adquirido um cavalo mestiço PSI, da criação do Sr. José Cunha, seu grande amigo de Paraíba do Sul, em pouco tempo o conjunto Zé Meirelles / Trovão ganhava todas as provas regionais.

 Datam desta época muitas amizades que fez com pessoas ligadas ao cavalo, como o Dr. José da Rocha Lagoa, o General José da Silva Rocha (Diretor da Remonta do Exército), o Sr. Atílio Pastorini (em sua opinião, o melhor ‘cavaleiro nato’ que conheceu), o Sr. Luiz Armentano (natural da região de Lagoa Dourada e grande apreciador de marchadores), o Dr. José Rezende Ribeiro de Oliveira, o Dr. Rubens Tavares de Rezende e tantos outros que lhe proporcionaram o aprendizado e a convivência amiga com o Cavalo.

 Coincidindo com este período (1954-1960) em que Zé Meirelles perseguia o cruzamento ideal para obter o cavalo brasileiro de salto (hoje ‘de hipismo’), os rumos da criação do cavalo Mangalarga Marchador tomaram direções diversas.  Em São Paulo o Mangalarga assume características de uma nova raça e em Minas o automóvel relega as boas tropas a um plano secundário, surgindo daí a miscigenação com outras raças e, pior do que isso, a criação de animais com fins exclusivamente comerciais.

 Coerente com seus princípios de honestidade e impulsionado por seu conhecidíssimo estopim curto, Zé Meirelles pede demissão do quadro de sócios da nascente Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Marchador da Raça Mangalarga.  Durante alguns anos, deixa de registrar seus produtos, inconformado com os animais expoentes da raça e solidário com o amigo Erico da Abaíba, que também tinha seus produtos refugados pelo inacreditável Controle Genealógico da Raça.  Vale lembrar que os animais descendentes daqueles cavalos e éguas sem registro figuram hoje com enorme destaque em leilões e exposições, o que demonstra o descritério de então.

 Alguns anos depois, atendendo aos insistentes pedidos do amigo e primo Dirceu Vilhena de Araújo, de quem muito gostava, volta a filiar-se à ABCCMarchadorRM e adquire algumas matrizes no Sul de Minas, que vieram a juntar-se a Abaíba Piaba e Abaíba Perdiz, ‘requisitadas’ ao primo Erico.

 Começa, então, a via crucis para encontrar o reprodutor ideal.  Outras éguas vão sendo incorporadas ao plantel, vários garanhões são usados[1] e nenhum agrada ao criador Zé Meirelles, com sua eterna mania de perfeição.  Até que milagrosamente, e graças ao relacionamento amigo e antigo com o Dr. José Rezende Ribeiro de Oliveira, o ‘Zé Boticão’, consegue adquirir o garanhão Herdade Jupiá.

[1] Nota em comentário: entre os garanhões testados, cita-se principalmente o castanho Herdade Teatro* (Seta Caxias x Herdade Cinema), Livro de Mérito MM-7 No. 003.

PREFIXO “CAFUNDÓ” – TRAJETÓRIA DE SUCESSO

 Naquela ocasião, a intuição, o olho clínico e o feeling de Zé Meirelles indicavam que poderia finalmente, com Jupiá, formar a tropa com o qual sempre sonhara.

 De lá para cá, a história do criador e do cavalo é conhecida de todos.  Sucesso sobre sucesso em todos os campos: no haras, nas pistas, nos leilões.  Recordes de preços.  E o nome ‘Cafundó’ obtém extraordinário destaque no criatório nacional da Raça Mangalarga Marchador.

 Em 1979, enfartado, Zé Meirelles não se conformou com a condenação a uma vida vegetativa, que normalmente se espera de um homem de 69 anos, vítima de um ataque cardíaco.  Passado o susto, emagreceu meia dúzia de quilos e foi à luta.  Hoje, aos 76 anos, monta a cavalo todos os dias. E não se limta aos cavalos certos, mansos, formados.  Monta em pêlo. Monta potros xucros e leva uma vida inteiramente normal, para demonstrar que seu amor pelo cavalo é muito maior do que um esporádico entupimento em suas coronárias.

 Apesar de relutante em comparecer a exposições, tem se consagrado nas pistas.  Seu principal garanhão, Herdade Jupiá, é sem dúvida o cavalo mais completo da raça: campeão de pista e de produção!  As matrizes – base do criatório, de sangue Abaíba, têm-se consagrado como campeãs de progênie e os animais gerados desse núcleo conquistaram para o seu proprietário os troféus de “Melhor Criador” e ‘Melhor Expositor’ na III a. Exposição Nacional do Mangalarga Marchador (1984), glória máxima para uma criação estabelecida há poucos anos e com pouco dinheiro.

 Na última Exposição Nacional (1986), o criatório Cafundó conquistou definitivamente o Troféu Meta (Tri - Campeão Nacional de Progênie de Pai consecutivo).  Na hora da entrega do prêmio, Zé Meirelles, sempre espirituoso e ligado aos amigos por sólidos laços afetivos, ergueu o troféu sobre a cabeça, à maneira do craque Carlos Alberto, na Copa de 70, e disse a frase lapidar, tomada emprestada ao seu amigo Erico Ribeiro Junqueira, que desejava homenagear naquele momento:

 “ – Meus cavalos trotam com as patas e marcham com o lombo”.

 Esse era, decerto, o objetivo de todos os criadores do passado, como é o pensamento dos atuais selecionadores da raça, que desejam o Mangalarga Marchador um Cavalo Amigo Forte Único Nacional Dócil Objetivo –

 

CAFUNDÓ.



Publicada na Revista Mangalarga Marchador

Edição Especial Cafundó

Ano II – No. 08 – 1987

 

Textos por José dos Reis Meirelles Neto



Informações Complementares

Fotos do Criatório


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